Naquela segunda-feira, o céu de Doha rasgou em silêncio muito antes que qualquer confirmação oficial chegasse, embora muitos de nós já estivéssemos captando os sinais sutis de que algo se aproximava. Primeiro vieram as luzes — traços brilhantes, indecifráveis, como estrelas desorientadas. Foi assim que um dos meus filhos interpretou: “parecem estrelas, mãe”. Senti meu coração nessa hora. Eles já estavam do lado de fora, indo aproveitar os últimos dias viáveis de brincar ao ar livre antes que o calor devastador do Catar tomasse para si todas as nossas escolhas. Depois, um som que não reconheci me arrancou do torpor — um pesadelo em movimento que se desenrolava sem que eu pudesse influenciar o desfecho. Um estrondo que meu corpo entendeu antes da mente: gelou meus ossos e ensinou ao meu coração uma nova batida.
Eu estava com o pé torcido, uma faixa frouxa, feita com o carinho que só um marido pode ter, envolvia o tornozelo, lembrança de uma queda boba dias antes. Mas, na guerra, até as pequenas dores precisam aprender a esperar.
Meus filhos estavam fora de casa, e quando ouvi a voz de um deles, me chamou — “mãe, olha o céu” — o tempo se adensou, se espessou, como se o ar ficasse mais denso de medo e realidade. Fui até a porta e vi. O céu não mentia.

Meu primeiro impulso foi correr atrás do meu filho, que havia acabado de sair. O segundo foi hesitar. Meu tornozelo gemeu, meu passo falhou. E é nesse entremeio que me instalo agora, escrevendo. Porque naquele instante, eu fiz algo que me custa: deleguei.
Um dos meus filhos perguntou se deveria buscar o irmão. E eu cedi.
“Sim, filho, corre atrás e traz ele.”
Meu filho se foi.
Para meu terror, os sons seguiam estrondosos, reverberando em cada átomo dentro de mim. Vi sua silhueta se afastar, e corri para avisar meu esposo — sem explicação, só gritei:
“Vai agora. Traz nossos filhos pra casa.”
E mesmo que ele tenha saído logo depois para encontrá-los, mesmo que tudo tenha se resolvido sem uma tragédia… o que ficou foi a pergunta. Aquela que se senta ao meu lado e cochicha:
E se?

Houve silêncio quando eles voltaram. Um silêncio que não era exatamente alívio, nem medo. Era um intervalo. Uma fenda. Uma fresta por onde se embrenha sem espaço pra existir, mas com necessidade de se fazer vista, brotava a consciência do que é ser mãe em tempos de incerteza — não como heroína, mas como alguém tentando não enlouquecer diante do incontrolável.
Foi um deles o primeiro a articular algo:
“O que está acontecendo?”
A pergunta atravessou mais do que meu córtex pré-frontal. Atravessou a fenda. Nossos olhares se cruzaram, buscando sentido na realidade, e eu, incerta da minha própria voz, só consegui dizer:
“Não sei, filho… vamos ficar seguros em casa até eu descobrir o que está acontecendo.”
Sem muito cuidado, fui subindo as escadas, ignorando os protestos do tornozelo. Abri a porta da varanda no segundo andar com toda a coragem que é preciso ter para ir buscar respostas no mundo. O céu, cortado por mísseis, me paralisou por um instante. Fogo e explosões se repetiam. Meu corpo inteiro estremeceu. Numa prece muda, testemunhei também as defesas desse país que escolhi chamar de lar. Elas se erguiam, precisas, como os ancestrais que um dia mergulharam fundo no mar — agora voavam alto no céu.

Com os olhos do dia seguinte, tudo parece cena de lenda. Lembrei das histórias que ouvi no Souq, das espadas cataris e seus guerreiros. Um povo que aprendi a admirar, que soube criar pérolas onde havia apenas deserto. Espadas misericordiosas e impiedosas ao mesmo tempo, curvas e afiadas, desenhadas para não deixar cura. Justamente por isso, evitadas. Os flares que eu via abatendo os mísseis me pareciam como essas espadas: um recado claro — não queremos guerra, mas se insistirem, encontrarão o fim.
É fácil escrever sobre coragem depois que tudo passa. Difícil é encarar os próprios critérios quando o mundo vira sombra e som. O que mais me dói não foi o estrondo, nem as luzes, nem o medo. Foi a sensação de que, naquele momento, eu não fui a fortaleza que prometi ser. É o olhar dos meus filhos, que sustentei por um fio e deixei para ir buscar respostas — não sei se viram em mim uma guia… ou alguém que vacilou.
Gritos me arrancaram da prece muda. Era minha vizinha da frente, conduzida por outros moradores, mãos na cabeça, completamente tomada pelo desespero. Como profissional da saúde — ainda que holística —, meu impulso imediato foi correr até ela, ou fugir de mim mesma, usar o que sei para servir. Mas, ao descer as escadas com pressa, entendi que o que eu podia fazer já estava diante de mim.
Meu filho, olhos perdidos, movimentos em câmera lenta. Um ataque silencioso de pânico se desenrolava ali mesmo, no espaço entre nossos corpos. Toquei seu ombro e pedi que olhasse para mim. Mais um estrondo — esse mais próximo. As paredes tremeram. O chão oscilou. E, pela primeira vez, me perguntei se estávamos mesmo vivendo apenas o que prevíamos: um ataque direto à base americana, ou poderia ser mais do que isso? Com tantos estrondos, com a terra balançando debaixo dos pés, eu me perdi de mim.
Caí numa espiral. O desespero que sempre mantenho em cativeiro, sob vigilância, se soltou. Logo eu, que só deixo o desespero me desesperar quando se torna inevitável, fui tomada. E quando a firmeza — tanto do chão quanto do teto — tremula, o corpo entende antes da razão: agora é real.
Foi o olhar do meu filho que me resgatou. Um olhar que me pedia presença. Que me convocava de volta ao papel que nunca posso abandonar: a mãe. Aquela que acolhe mesmo sem colo para si. Que oferece mesmo quando não tem. Que protege com o próprio corpo, se for preciso.
Voltei.
Percebi que ele estava quase no mesmo lugar de antes. O tempo havia passado, mas para ele — para nós — tudo estava suspenso, como a poeira que pairava no céu. Toquei seu ombro novamente. Pedi que sentasse no sofá. Disse para perceber a sala, olhar em volta, ligar a TV. Queria oferecer um chão novo. Mesmo que simbólico. Queria, no meio do caos, dar forma ao abrigo.

Foi então que, como em outros momentos escuros da minha vida, uma calma gelada tomou meu corpo. Não era paz. Era função. Era comando. A racionalidade que aparece quando não há escolha. Peguei os passaportes. Separei as bombinhas de asma. Agasalhos. A chave do carro. Cada passo feito com precisão. Como se haveria, ainda naquela noite, um novo desdobramento a ser enfrentado.
Liguei para a minha prima (ou troco para: a única família que tenho por perto) enquanto separava as bombinhas de asma — um gesto quase automático, mas também cheio de intenção. Precisava dizer, ainda que sem palavras, o quanto estamos juntas nessa aventura no Oriente Médio, saber se ela estava bem. Queria escutar sua voz. E bastou isso: o tom dela, acelerado, respirando rápido, descendo as escadas como se também fugisse do peso que pairava lá fora. Não dissemos muito, mas eu entendi. Estávamos no mesmo estado: sobrevivência.
Não era desespero. Era ação.
Em algum lugar dentro de mim, uma parte ainda lúcida sussurrava: tem caos que se resolve se você não atrapalhar. Como as ondas que quebram, como uma febre que arde até baixar sozinha. Às vezes, a paz precisa só de espaço. De silêncio. De não ser interferida. Ficamos em casa, sob nosso teto, protegidos.
Ao meu redor, o som começou a escapar. O chão, a estabilizar. As crianças, agora diante da televisão, riam distraídas de um desenho. Eu continuava no modo execução — carregando os dispositivos eletrônicos, revisando mentalmente cada detalhe.
Mas há momentos — e este era um deles — em que o caos exige ação. Exige energia, movimento, escolha imediata. Saber distinguir entre os dois é uma sabedoria que não se aprende lendo. Se aprende vivendo.
Esbarro com meu esposo pelos corredores — cada um fazendo o que pode para dar sentido ao que está vivendo. Nós dois operando em silêncio, em universos paralelos, cada um tentando organizar o que pode dentro da desordem emocional que nos abalava sem aviso, abalo que pensávamos ser capazes de conter quando planejamos para esse exato acontecimento. A realidade nos traía e revelava novas camadas de nós mesmos. Nós não falamos muito. Apenas existimos juntos, ali, entre o medo e o riso. E sim, rimos.
Rimos porque somos brasileiros.
Porque é assim que aprendemos a lidar com as nossas desgraças desde sempre. Com ironia, com acidez, com improviso. Com tantos limões que, sendo brasileiros, a vida nos entrega, fazemos mais do que limonada: fazemos piada, fazemos samba, fazemos festa.
Ser uma brasileira no Oriente Médio é isso — sobreviver com ternura, transformar ruínas em riso, e nunca, jamais, esquecer que dentro da gente há uma pátria inteira que aprendeu a sambar no meio do fogo, e continua sambando, só que agora, samba nas areias do deserto.

Nota da autora:
Por respeito à privacidade da minha família, todos os pronomes e referências pessoais neste texto foram padronizados no masculino de forma intencional. Algumas situações e detalhes foram adaptados ou anonimizados para preservar a identidade das pessoas envolvidas, sem comprometer a veracidade emocional dos acontecimentos.
Respostas de 7
Nossa filha.
Que momentos vividos.
Eu aqui me desesperei ao.ouvir a notícia
Nem faço ideia do real momento.
Agora passado um pouco mais, é momento de conversar, orientar as crianças. Mantê-las seguras mas também cientes.
Amo vcs para sempre. Nunca esquecerei
Rebeca,trabalho com sua mãe, você é forte,corajosa com ela!!
Já deu tudo certo!
Sua escrita tem o dom raro de traduzir o invisível em palavras, e transformar acontecimentos em memórias que tocam quem lê. Que bom que você escreve. Que bom que compartilha.
Meu Deus, tenha misericórdia do teu povo!
Deus é contigo, exemplo de mãe pois imagino como deve ter sido difícil pois não pensamos em nós e sim nos filhos. Mulher guerreira
Rebeca, desde o início dessa crise, eu me preocupei com vc e Família e com sua mãe e irmão. Quando soube do ataque à base aérea, fiquei mais apreensiva! Pensei em me comunicar com sua mãe q é uma pessoa muito querida, mas temi preocupá-la ainda mais! Eu, no lugar dela, ficaria desesperada! Graças a Deus que vc manteve o equilíbrio e acabou tudo bem! Espero em Deus que haja paz real entre Irã e Israel e em todo Mundo!
Que Deus Abençoe sempre vc e Família!
Reparei que vc escreve muito bem!
Ler teu relato me levou à cena de uma maneira intensa que eu nao sei explicar se teria reação. Se saberia me mover. E desejo que tu siga fazendo limonadas e dando risada como boa brasileira. Defendendo os teus e protegendo até do que nao temos controle algum. Que poder. Sentindo daqui de longe o gostinho e o desabor dessa vivência amedrontadora.